terça-feira, abril 15, 2014

TEATRO: O INSPECTOR GERAL


“O INSPECTOR GERAL” NO CARTAXO

“O Inspector Geral”, de Nikolai Gogol, uma peça escrita em 1836, falando da Ucrânia natal do escritor, ou da Rússia em cuja língua Gogol sempre escreveu, ou de qualquer outro país onde se possa adaptar a crítica (infelizmente, a todos), é uma obra universal que parece ter desenvolvido polémica ao longo dos tempos, sem que se perceba porquê. “O Inspector Geral” é uma peça política, local e mundial, que nos fala não tanto de uns certos políticos (que os há, oh se há!, mas não são todos!), mas sobretudo da condição humana que, quer queiramos ou não, permanece imutável com o rolar do séculos. Na verdade há muita gente que se procura aproveitar das situações e dos postos que ocupa, há muito traste corrupto, muita inveja, muita snobeira, muita intriga, muito oportunista, muito arrivista, e a História da Humanidade tem sido um confronto constante entre Maus e Bons, com uma alta percentagem de Assim-Assins pelo meio, que lá vão fazendo progredir lentamente a roda da História. Gogol serve-se de uma anedota, desenvolvida com mestria, para apontar o dedo na direcção certa.
Curiosamente a peça tem milhares de representações pelo mundo fora e algumas adaptadas às realidades de outros países. Em Portugal, Raúl Solnado inaugurou o seu Teatro Villaret (1965) com uma encenação memorável; aqui não há muitos anos (2009) a Maria do Céu Guerra deu-nos outra excelente versão, na Barraca (ver aqui), e no cinema ficou célebre a adaptação, realizada por Henry Koster, em 1949, com Danny Kaye no protagonista.


A história é muito simples: as autoridades de uma pequena localidade descobrem, por vias travessas, que um inspector dos serviços centrais está para chegar à povoação para inspeccionar o funcionamento local. Com culpas no cartório e muitos segredos na manga, o edil e outros responsáveis procuram localizar o inspector antes de ele se anunciar e cortejá-lo de forma a domesticar a inspecção. Se necessário, com benesses várias, notas, muitas notas entregues por debaixo da mesa, ofertas diversificadas, que vão até à sedução da mulher e da filha do presidente. Desgraçadamente, enganam-se no figurão, e passam uns dias a cumular de prendas não o inspector geral, mas um aldrabão que se aproveita da situação.
Depois de terem encenado Oscar Wilde (“Um Marido Ideal”), Bernardo Santareno (“O Crime de Aldeia Velha”), William Shakespeare (“As Alegres Comadres de Windsor”), Eduardo De Filippo (“Nápoles Milionária”), um original (“Pânico”), e Alice Vieira (“Trisavó de Pistola à Cinta”), a Área de Serviço, uma companhia de teatro comunitário, criada no Cartaxo, e que tem em Frederico Corado o seu encenador e impulsionador desde a primeira hora, levou agora à cena, no Centro Cultural do Cartaxo, uma nova versão de “O Inspector Geral”, adaptada a Portugal e a este período de austeridade troiqueana.
Este espectáculo deve ser visto sob vários aspectos. Esteticamente é muito conseguido, com cenários económicos (a companhia não tem subsídios, vive de si própria e dos pequenos apoios locais), mas muito bonitos e eficazes, numa encenação inventiva, e um tratamento técnico que não fica nada a dever aos profissionais (sim, toda a companhia é amadora, trabalha pelo prazer de fazer teatro, bom teatro, veja-se a escolha intransigente dos autores). Quanto ao grupo de actores, que já chegou a ter em palco mais de 60 intervenientes, os progressos são evidentes. A rodagem vai trazendo experiência e há já muito boas surpresas e um nível global que não envergonha ninguém. O resultado final é muito divertido, contundente, não procura o riso fácil, nem o êxito a todo o custo. As salas do Centro Cultural do Cartaxo estão sempre cheias (esgotadas ou quase) e o trabalho da companhia é saudado por todos quantos ali se deslocam.
Mas há um outro aspecto particularmente relevante nesta companhia. Os mais de 40 elementos que a integram regularmente são trabalhadores, estudantes, reformados e encontram ali um refúgio para as suas frustrações pessoais, aspirações, solidão, crises emocionais, problemas profissionais, etc. Num momento tão dramático da nossa vida colectiva, a existência de grupos como este é não só um estímulo cultural notável, como uma benesse social de invulgar significado. É altura de os poderes locais e nacionais encararem esta iniciativa com outro olhar e sobretudo que a comunicação social lhe empreste a visibilidade que merece. Se “O Inspector Geral” nos fala dos trafulhas, esta companhia comunitária mostra-nos o outro lado da sociedade, aquele que deve ser acarinhado e aplaudido.
observação: para os devidos efeitos tenho a declarar que o Frederico Corado é meu filho. Pode dar-se o caso de haver alguma parcialidade, que tento sempre contrariar. Mas, ficam a saber.  


Fotos : Neno Photo e Germano Campos, que agradeço.
O INSPECTOR GERAL, de Nikolai Gogol; Encenação e Adaptação: Frederico Corado; Concepção e Execução Cenográfica: Frederico Corado, Carlos Ouro e Mário Júlio; Produção CCC: Marco Guerra e Carlos Ouro; Produção Área de Serviço: Frederico Corado, Florbela Silva e Vânia Calado com a assistência de Pedro Ouro, Carolina Viana, Rita Correia Alves; Grafismo: Cátia Garcia; Assistente de Encenação: Florbela Silva, Maria Ramalho e Rita Correia Alves; Desenho de Luz: Ricardo Campos; Direcção Musical: Maestro Nuno Mesquita com a Banda da Sociedade Cultural e Recreativa de Vale da Pinta; Direcção de Cena: Mário Júlio; Contra-Regra: Filipe Falua; Fotografia: Vitor Neno; Montagem: Mário Júlio e Vitor Lima; Intérpretes: André Diogo, João Nunes, Sara Xavier, Vânia Calado, Mauro Cebolo, Mário Júlio, Pedro Ouro, Pedro Lino, Júlio Cardoso, Norberto Sousa, Luís Rosa Mendes, Paulo Cabral, Daniel Mateus, Constança Lopes, Ana Rita Oliveira, Carolina Viana, José Manuel Rodrigues, Miguel Viegas, André Vieira, José Ribeiro, Rosário Narciso, Mena Caetano, Jeanine Steuve, Isabel Coelho, José Falagueira, Maria Cerqueira, Bruna Diogo Santos, Amélia Martins, César Cordeiro, Susana Pais, Carlos Ramos, Guilherme Vicente, Inês Perdigão, Andreia Lourenço e Inês Barbosa; Uma Produção do Área de Serviço com o Centro Cultural do Cartaxo e a Mosaico e Entrar Em Palco; Bilhetes: 4€ •• M12 anos; Próximo espectáculo: dia 25 de Abril. 

1 comentário:

CC disse...

Muito obrigado. Grande grupo. Grande Frederico, apesar de ser filho, note-se humildade que ele dá na partilha de informação, saber saber e saber fazer. Volta à cena a 25 de Abril de 2014 no Centro Cultural do Cartaxo. Com certeza será uma tarde bem passada.. César Cordeiro