sábado, fevereiro 08, 2014

CINEMA: O LOBO DE WALL STREET


O LOBO DE WALL STREET

Conta-se que, em várias épocas, e através de testemunhos diversos, reis e imperadores, generais e chefes de estado, quando recebiam uma má notícia, normalmente das frentes de batalha, mandavam matar o mensageiro. Existe um ditado latino que confirma a história ou a lenda: “Ne nuntium necare”: Não mate o mensageiro. Shakespeare actualizou a mensagem para "Don't shoot the messenger", em “Henry IV”, e igualmente em “Antony and Cleopatra”. Na Antiguidade Clássica, Sófocles, em “Antigona”, não era tão drástico, mas mantinha o essencial: “ninguém gosta do mensageiro que traz más notícias”.
Nos nossos dias, há muita gente que não gosta de “O Lobo de Wall Street”, de Martin Scorsese. Já li um pouco de tudo, da “obra-prima” à “merda”, e parece-me que muitos atacam o filme, não pelo trabalho de Scorcese, mas essencialmente pela “mensagem” que ele transmite. Julgo que há alguns espectadores que detestam não tanto o filme, mas sobretudo o retrato que ele oferece de um certo extracto da sociedade contemporânea. Recusam-se mesmo a acreditar que tal retrato seja autêntico. Na verdade, é demasiado mau para ser verdade. Mas acredito que seja verdade. Vou mais longe: acredito que é por causa do que vimos e ouvimos em “O Lobo de Wall Street” que estamos como estamos, um pouco por todo o lado. O filme fala de Wall Street, mas Walll Street aqui é um símbolo mundial, dos EUA à China, passando por este recanto à beira Atlântico plantado.


Vamos por partes. Este é mais um filme baseado em factos reais. Jordan Belfort, o protagonista, existiu e existe, escreveu um livro que anda nas montras de todas as livrarias do mundo, que conta as suas “aventuras” no universo da alta e da baixa finança. O livro tornou-se um best-seller e percebe-se o que levou Scorsese a interessar-se por ele: é um excelente ponto de partida para um argumento sobre o que se passa, de há umas décadas para cá, com um certo tipo de operações bolsistas, que envolvem toda a finança mundial, os bancos, as bolsas, a corrupção, o arrivismo, impondo um estilo de vida que é a personificação da falta de escrúpulos destes indivíduos medonhos que comandam os destinos da Humanidade.
Os factos remontam aos anos 80. Como poderia deixar de ser, se foi aí que tudo começou, com Reagan e Thatcher, e o aparecimento dos yuppies tão acarinhados pelos poderes públicos, que iriam provocar, através deles, a “revolução” económica, social e política que estamos a viver agora. A ideia central era valorizar o dinheiro e desvalorizar tudo o mais. Não há moral, não há ética, não há amizades ou amor, não há cultura, não há nada que não seja cifrões. A globalização ajudou à festa e a realidade virtual foi a cereja no cimo do bolo. Antigamente, o capitalismo vivia do acumular da riqueza que se extraía do trabalho, trabalho de administradores e gestores, e sobretudo da mão de obra de operários (estes explorados, em noventa por cento dos casos), mas, a partir da economia virtual, da especulação bolsista, o dinheiro multiplica-se de forma mágica. A exploração continua, mas agora não há “rostos”, o que existe é a “financia internacional”.


Jordan Belfort percebeu isso quando entrou para uma empresa de correctores de bolsa e teve um mestre fabuloso, Mark Hanna (um espantoso Matthew McConaughey no filme), que lhe ensina que na vida há três pilares: dinheiro para multiplicar, prostitutas para usar e drogas para consumir e manter a “máquina” alerta. Bater no peito, como os raguebistas neozelandeses também ajuda, mas não é vital. Quando se começa a ambientar e a subir na vida, a empresa vai a falência e Jordan, espertalhaço, segue os ventos da mudança. Em lugar de uma grande empresa que joga com o capital dos tubarões, vai para a uma pequena loja que faz o mesmo, mas com as economias do peixe miúdo. Com uma diferença. Enquanto nas grandes empresas os corretores cobram 10% e dão a ganhar algum aos multimionários, ali cobram 50% e a arraia-miúda que se cuide. O mais certo é não ganhar nada e perder as economias, mas os seus 50% estão garantidos.
Faz fortuna, funda a sua própria empresa e torna-se ele próprio um multimilionário com uma filosofia de vida muito restrita: ganhar o máximo de dinheiro, o mais rapidamente possível (nenhum dos seus empregado está “autorizado” a desligar um telefone sem ter “abatido” o cliente que se encontra do outro lado do fio), enquanto promove grandes bacanais com miúdas “fixes” e drogas a rodos. Uma chamada “lemon”, novidade no meio, é a que está a dar. Enquanto vão arruinando milhares de pequenos (mas gananciosos) especuladores, eles vão-se divertindo com frases que pouco mais dizem do que “fuck” e comportamentos de risco que podem acabar mal para eles e sobretudo para a economia mundial (não a economia da alta finança, mas a dos desgraçados que vivem do seu ordenado ou da sua reforma - vidé o que se passa por aqui, boa amostra).


Claro que a certa altura, o cambalacho chama a atenção das autoridades, o FBI entra na jogada, a maioria vai parar à cadeia, Jordan Belfort cumpre uma pena, três anitos, coisa pouca, mas ironia das ironias, “the show must go on”, sai da cadeia com um livro escrito a contar as suas façanhas, e agora dá conferências, bem pagas, a explicar o seu método de “empreendorismo” (onde é que eu já ouvi falar disto?).
Pois acredito que muita gente não goste de ouvir esta “mensagem”. É a confissão de uma sociedade virada do avesso, que compensa o criminoso e pune a vítima. É uma sociedade do desarincanço, da total falta de valores, de um hedonismo mórbido, de uma ausência de cultura evidente. Vive-se ao nível animalesco mais primário. Sexo já nem sequer é prazer, é mera funcionalidade, droga é entorpecimento até à idiotia, dinheiro é a suprema glorificação da carreira. As orgias relembram Roma, esquecendo-se que a seguir viria a “Queda do Império Romano”.
Martin Scorcese imprime ao seu filme o ritmo de um circo romano, com uma ironia que roça o sarcasmo, e um realismo que só muito a custo poderemos julgar caricatural. Esta é a realidade concentrada em três horas infernais que custam a digerir, é verdade. De resto, a montagem é vulcânica, as interpretações brilhantes (Leonardo Di Caprio é excelente, mas não só ele), a fotografa e a sonoplastia notáveis, e “O Lobo de Wall Street” é um must que sobretudo não deve ser ignorado. Nem sempre quem nos traz más notícias é nosso inimigo. Pode bem ser o único amigo que nos resta e aquele que nos apela ao bom senso e à racionalidade.


O LOBO DE WALL STREET
Título original: The Wolf of Wall Street

Realização: Martin Scorsese (EUA, 2013); Argumento: Terence Winter, segundo obra de Jordan Belfort; Produção: Riza Aziz, Richard Baratta, Leonardo DiCaprio, Danny Dimbort, Georgia Kacandes, Joey McFarland, Alexandra Milchan, Martin Scorsese, Adam Somner, Emma Tillinger Koskoff, Irwin Winkler, Rick Yorn; Fotografia (cor): Rodrigo Prieto; Montagem: Thelma Schoonmaker; Casting: Ellen Lewis; Design de produção: Bob Shaw; Direcção artística: Chris Shriver; Decoração:  Ellen Christiansen; Guarda-roupa:  Sandy Powell; Maquilhagem: Mindy Hall, Michael Marino, Mary Anne Spano, Joseph Whitmeyer; Direcção de Produção:  Richard Baratta, Kelley Cribben, Adrian Harrison, Georgia Kacandes, Francesco Marras; Assistentes de realização: Adam Somner, Scott Bowers, David Fischer, Don H. Julien, Robert Legato, Francisco Ortiz; Departamento de arte: Philip Canfield, David Meyer, Alyssa Motschwiller, Raymond M. Samitz, Sha-Sha Shiau; Som: Frank Graziadei, Heather Gross, James J. Sabat Jr., James Sabat, Philip Stockton; Efeitos especiais: Drew Jiritano, R. Bruce Steinheimer; Efeitos visuais: Joe DeWalt Brown, Bruce Hwang Chen, Justin Ferk, Jason Kolowski, Robert Legato, Ben Record, Mark Russell, Dan Seddon, Lisa Spenc;  Agradecimentos: Luc Besson, Rick Hohmann, James P. Schramm; Filme dedicado a Roger Ebert; Companhias de produção: Red Granite Pictures, Sikelia Productions, Appian Way, EMJAG Productions, TWOWS; Intérpretes:  Leonardo DiCaprio (Jordan Belfort), Jonah Hill (Donnie Azoff), Margot Robbie (Naomi Lapaglia), Matthew McConaughey (Mark Hanna), Kyle Chandler (Agente Patrick Denham), Rob Reiner (Max Belfort), Jon Bernthal (Brad), Jon Favreau (Manny Riskin), Jean Dujardin (Jean Jacques Saurel), Joanna Lumley (Tia Emma), Cristin Milio (Teresa Petrillo), Christine Ebersole (Leah Belfort), Shea Whigham, Katarina Cas, P.J. Byrne, Kenneth Choi, Brian Sacca, Henry Zebrowski, Ethan Suplee, Barry Rothbart, Jake Hoffman, Mackenzie Meehan, Bo Dietl, Jon Spinogatti, Aya Cash, Rizwan Manji, Stephanie Kurtzuba, J.C. MacKenzie, Ashlie Atkinson, Thomas Middleditch, Stephen Kunken, Edward Herrmann, Jordan Belfort, Ted Griffin, Fran Lebowitz, Robert Clohessy, Natasha Newman Thomas, Sandra Nelson, etc. Duração: 180 minutos; Distribuição em Portugal: Zon Lusomundo; Classificação etária: M/ 16 anos; Data de estreia em Portugal: 9 de Janeiro de 2014.

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