segunda-feira, fevereiro 17, 2014

CINEMA: HER


UMA HISTÓRIA DE AMOR

“Her” é um triunfo em toda a linha, a começar desde logo pelo clima que cria. Ao pretender-se um história de amor num futuro próximo, a ambiência que o filme suscita é particularmente inquietante, porque tão depressa nos parece estarmos nos nossos dias, como num “futuro próximo”. Na verdade, estamos nos “nossos dias”. Os cenários terão sido aqui e ali retocados, mas no essencial, nos exteriores e interiores, o que vemos é Los Angeles e Xangai, bem enquadrados para nos oferecer alguma estranheza, mas nada mais do que isso. O vestuário e os adereços parecem de hoje, talvez um pouco “casual” demais. Elegantes mas desportivos. Há os telemóveis, que são mais de imagem do que de som, mas ver as pessoas nas ruas passarem agarradas a eles já não é surpresa. Só as funções diferem. Mas a inquietação que transmite ao espectador, ao afirmar-se num futuro próximo e ao nos surgir tão banal, é fortíssima. Tanto mais que o tema é inquietante.
Theodore Twombly (Joaquin Phoenix), um escritor de cartas sentimentais, profissão de futuro (apesar de já ter sido do passado, ainda que de outra forma), acaba de se separar da mulher, vive sozinho, é um indivíduo solitário, que tem amigos no local de trabalho e na vizinhança, mas não é só ele que nos oferece uma imagem de solidão. A solidão é uma tonalidade colectiva, mas os rostos não são de infelicidade. Há sorrisos, uma certa nostalgia nalguns olhares, anda-se só pelas ruas, mas a qualidade de vida aparenta ser boa. Não se vê miséria, não se fala de dificuldades, as ruas estão esmeradamente limpas, estamos longe das imagens catastróficas de certas obras que nos imaginam futuros negros, tipo “Blade Runner”.

O computador é o local de trabalho de Theodore. Um dia, ouve falar num novo sistema operacional para seu computador, o SO1, através do qual pode falar com operadoras virtuais que podem satisfazer os seus desejos. Profissionais, de início. Emocionais logo a seguir.  Nada de muito novo para quem já frequentou chats, blogues, facebooks e quejandos. Com a diferença de que a Samantha (Scarlett Johansson) que responde do outro lado não é real, paira no éter. Nos chats pode não se saber quem está do outro lado, mas em princípio é alguém de carne e osso. Aqui essa materialidade não existe à partida.
Mas, apesar disso, Theodore não resiste ao apelo e apaixona-se pela voz e por tudo quanto ela traz consigo. Ela está sempre disponível, desliga-se quando não é necessária, ajuda-o no que ele necessita, e geme languidamente de prazer nas ocasiões certas. A relação amorosa é um facto, pelo menos do lado de Theodore, mas quem sabe o que sente Samantha?


No mesmo andar de Theodore vive um casal. Amy (Amy Adams) é abandonada pelo marido, e encosta a cabeça no ombro do vizinho, para se sentir reconfortada. Poderia ser uma nova história de amor, esta mais normal, mas o que será a normalidade num “futuro próximo”? O que “Her” nos deixa é a sensação de que tudo será diferente e, apesar de uma certa nostalgia que paira no ar, nada nos diz que o futuro será pior do que o presente, o que é um aspecto  muito inquietante do filme de Spike Jonze. Com um tal argumento, o que se aguarda é um final calamitoso, onde o homem contemporâneo se poderia ver dominado pela tecnologia, onde a solidão tudo corrói até ao suicídio, onde o desespero emocional fosse devastador. Nada disso se sente no filme. Há incomodidade, há alguma ausência de comunicação, há emoções perdidas? Claro, mas sempre houve e “Her” diz-nos que sempre haverá. Não é um filme catástrofe, mesmo que a catástrofe seja sentimental. Muito pelo contrário. No final de “Tempos Modernos”, de Chaplin (1935), Charlot e a companheira partem com alguma esperança, rumo ao desconhecido, vemo-los de costas estrada fora. Aqui, Theodore e Adam, do alto do seu terraço, olham o horizonte. Na companhia um do outro. Vemo-los igualmente de costas e é um “end” que não sabemos se é “happy” ou não, mas é um grande final.
Spike Jonze é um dos mais interessantes cineastas da moderna Hollywood e um dos menos convencionais. Tem uma extensa filmografia, com dezenas e dezenas de curtas metragens e de documentários, muitos experimentais, e algumas longas que mostram bem o seu desalinhamento da produção corrente: “Queres Ser John Malkovich?” (1999), “Inadaptado” (2002), “O Sítio das Coisas Selvagens” (2009) até chegar a esta “Uma História de Amor” (2013) que é um exercício brilhante de um cineasta que manuseia como poucos as subtilezas das emoções e passeia a câmara com a delicadeza e o pudor e um predestinado.
Depois o argumento, do mesmo Spike Jonze, é de uma inteligência e originalidade invulgares, a fotografia de Hoyte Van Hoytema ajusta-se brilhantemente à doçura meiga das tonalidades, a música de Owen Pallett, e dos Arcade Fire, é de uma envolvência absoluta, a montagem de Jeff Buchanan e Eric Zumbrunnen muito boa e a concepção plástica de K.K. Barrett admirável de justeza. Começam a faltar os adjectivos para a interpretação absolutamente extraordinária, de rigor e contenção, de Joaquin Phoenix, muito bem acompanhado por Amy Adams (que belíssima actriz!), Rooney Mara, Olivia Wilde, ou de Scarlett Johansson, a voz de Samantha.
Indispensável, portanto.


UMA HISTÓRIA DE AMOR
Título original: Her

Realização: Spike Jonze (EUA, 2013); Argumento: Spike Jonze; Produção: Ray Angelic, Chelsea Barnard, Megan Ellison, Natalie Farrey, Spike Jonze, Vincent Landay, Daniel Lupi; Música: Owen Pallett, Arcade Fire; Fotografia (cor): Hoyte Van Hoytema; Montagem: Jeff Buchanan, Eric Zumbrunnen; Casting: Cassandra Kulukundis, Ellen Lewis; Design de produção: K.K. Barrett; Direcção artística: Austin Gorg; Decoração: Gene Serdena; Guarda-roupa: Casey Storm; Maquilhagem: Steve Artmont, Kristin Berge, Cydney Cornell, Bo Xian, Nani Velez, Joy Zapata; Direcção de Produção: Randall James Bol, Daniel Lupi, James Masi, Michael McDermott, Hameed Shaukat, Will Weiske; Assistentes de realização: Robert E. Kay, Sylvia Liu, David K. Riebel, Rod Smith, Thomas Patrick Smith, Cecilia Sweatman; Departamento de arte: Allen Coulter, Venessa De Anda, Jane Fitts, Chris Forster, Sonny Gerasimowicz; Som: Ren Klyce; Efeitos especiais: Elia P. Popov; Efeitos visuais: Janelle Croshaw, Doron Kipper, Brice Liesveld, Fredrik Nord, Andrew Wood; Companhias de produção: Annapurna Pictures; Intérpretes: Joaquin Phoenix (Theodore Twombly), Amy Adams (Amy), Rooney Mara (Catherine), Olivia Wilde (mulher em encontro), Scarlett Johansson (voz de Samantha), Chris Pratt (Paul), Matt Letscher (Charles), Sam Jaeger (Dr. Johnson), Luka Jones (Mark Lewman), Kristen Wiig (voz sexy), Bill Hader (amigo em sala de chat), Spike Jonze (voz de criança), Portia Doubleday, Soko, Brian Cox, Lynn Adrianna, Lisa Renee Pitts, Gabe Gomez, Chris Pratt, Artt Butler, May Lindstrom, Rooney Mara, Matt Letscher, David Azar, Dr. Guy Lewis, Melanie Seacat, Pramod Kumar, Evelyn Edwards, Steve Zissis, Dane White, Nicole Grother, James Ozasky, Samantha Sarakanti, Luka Jones, Gracie Prewitt, Claudia Choi, Laura Kai Chen, Portia Doubleday, Wendy Leon, Charles Riley, Robert Benard, etc. Duração: 126 minutos; Distribuição em Portugal: Zon Audiovisuais; Classificação etária: M/ 16 anos; Data de estreia em Portugal: 13 de Fevereiro de 2014.

Sem comentários: