terça-feira, novembro 23, 2010

TEATRO NO POLITEAMA

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SÍTIO DO PICAPAU AMARELO
“Sítio do Picapau Amarelo” é uma criação literária de um escritor brasileiro, que deixou obra entre finais do século XIX e a primeira metade do seguinte: José Bento Renato Monteiro Lobato (nascido em Taubaté, a 18 de Abril de 1882, faleceu em São Paulo, a 4 de Julho de 1948, no Brasil), mais conhecido simplesmente por Monteiro Lobato. Tradutor prestigiado, escritor de romances (“O Presidente Negro”), crónicas, artigos, e até de um ensaio sobre o petróleo, acabaria por ser celebrizado pela sua vasta contribuição no campo da literatura infantil, onde sobressai precisamente “O Picapau Amarelo” (1939), além de outras como “Reinações de Narizinho” (1931) ou “Caçadas de Pedrinho” (1933) etc. O primeiro livro da série foi publicado em Dezembro de 1920, criando desde logo um grupo de personagens que ficaria na memória de quem os lia e impondo um clima de magia contagiante, que por vezes roçava o surrealismo.



As personagens principais moravam, ou passavam grande parte do seu tempo, no “sítio” (que no Brasil quer dizer a quinta, a casa) que pertencia a Dona Benta, baptizado com o nome de “Picapau Amarelo”, donde o título da série. As aventuras passavam-se, pois, em redor desse “Sítio do PicaPau Amarelo”, onde vive Dona Benta com a sua neta, Narizinho, uma menina de nariz empertigado que adora a sua boneca de trapos, Emília. Um dia, por artes de berliques e berloques, mais pós de perlimpimpim, esta começa a falar e ganha vida! Existem ainda muitas outras personagens, como Pedrinho, um menino, primo de Narizinho, que mora na cidade, o Marquês de Rabicó, o Conselheiro, Quindim, o Visconde de Sabugosa, a Tia Nastácia, que cozinha deliciosas guloseimas, o Tio Barnabé, a velhaca Cuca, e o diabinho Saci, etc.

O principal inspirador de Monteiro Lobato foi outro conhecido escritor brasileiro de literatura infantil, Figueiredo Pimentel (autor do também muito popular "Contos da Carochinha").

O sucesso desta série de livros infantis cedo interessou a televisão. A primeira adaptação foi exibida a partir de 3 de Junho de 1952 até 1962, na TV Tupi, 360 episódios gravados ao vivo, no programa “Teatro Escola de São Paulo”, criado por Júlio Gouveia e Tatiana Belinky. A história escolhida para inaugurar o programa foi “A Pílula Falante”, um dos capítulos do livro “Reinações de Narizinho”. O programa durou dez anos e foi um grande sucesso do canal. Com episódios de 45 minutos cada, começava cada um deles com o actor Júlio Gouveia a abrir um livro para contar uma história e terminava com o intérprete dando por completa a leitura e fechando o livro. No elenco, Lúcia Lambertini era Emília, António Silvio Lefèvre e depois David José foram Pedrinho, Lidia Rozenberg e depois Edy Cerri interpretavam a Narizinho, Rubens Molino foi o Visconde de Sabugosa, Sydneia Rossi a Dona Benta e Benedita Rodrigues a Tia Nastácia. Em Setembro de 1957, a série estreou na TV Tupi do Rio de Janeiro e passou a ser dirigida por Mauricio Sherman. Lúcia Lambertini continuou a ser Emília. O elenco: André José Adler (Pedrinho), Leny Vieira (Narizinho), Iná Malaguti (Dona Benta), Zeni Pereira (Tia Nastácia), Elísio de Albuquerque (Visconde) e Daniel Filho (Dr. Caramujo).

Em 1964, a actriz e directora Lúcia Lambertini mudou-se com a série para a TV Cultura de São Paulo. Manteve-se no ar durante seis meses, sem repetir o sucesso alcançado na TV Tupi. Os mesmos actores da versão da TV Tupi continuaram a “ser” Emília, Narizinho e Pedrinho. O Visconde era interpretado por Roberto Orosco, Dona Benta por Leonor Pacheco e Tia Nastácia por Isaura Bruno.

A gesta televisiva continuou: em 12 de Dezembro de 1967, Júlio Gouveia e Tatiana Belinky ressuscitaram o “Sítio” na TV, num novo canal, a TV Bandeirantes. A série tinha agora cenários naturais de um “sítio” autêntico e abria com um tema musical da autoria de Salatiel Coelho. Em vez de ser emitida em directo, ao vivo, passou a ser gravada e depois reproduzida, dando maior segurança e conforto aos actores. Cada episódio tinha 30 minutos e a série permaneceu no ar por dois anos, até 1969. Os actores começaram a ser substituídos por outros, Zodja Pereira assumiu o papel de Emília, Silvinha Lanes foi a Narizinho e Ewerton de Castro o Visconde de Sabugosa.
A versão mais conhecida e exportada para o mundo todo, foi a da TV Globo, iniciada 7 de Março de 1977 e prolongada até 31 de Janeiro de 1986. Foi vista e revista em Portugal e deixou boa recordação. A banda sonora era da responsabilidade de Dori Caymmi e formada por temas essencialmente brasileiros, inspirando-se na mitologia e no folclore locais. Destacava-se igualmente o tema de abertura composto por Gilberto Gil, "Sítio do Picapau Amarelo".
A TV Globo criou um estúdio especial para a gravação do programa, na Barra de Guaratiba, onde existia um “sítio”, com casa, curral e jardins de Burle Marx, onde eram gravados os exteriores e muitas cenas de interiores (sala e cozinha da casa de Dona Benta, por exemplo). As outras gravações (biblioteca, quartos, gruta da Cuca, Reino das Águas Claras etc.) eram gravadas nos estúdios da Cinédia. Nesta versão, as personagens criaram grande empatia com o seu público-alvo, mercê da qualidade do seu elenco: Zilka Salaberry (Dona Benta), Dirce Migliaccio (Emília), Jacyra Sampaio (Tia Nastácia), Rosana Garcia (Narizinho), Júlio César Vieira (Pedrinho), André Valli (Visconde de Sabugosa), Samuel Santos (Tio Barnabé), Dorinha Duval (Cuca), Romeu Evaristo (Saci), Ary Coslov (Jabuti), Germano Filho (Elias Turco), Jaime Barcellos (Coronel Teodorico), Tonico Pereira (Zé Carneiro), Canarinho (Malazarte ou Garnizé) entre outros. (1)

Esta foi a versão de maior sucesso, muito embora outra surgisse em 2001, depois da rede Golbo ter assinado um novo contrato com os herdeiros de Monteiro Lobato, para produzir um novo conjunto de episódios que teria a duração de dez anos. Começou a ir para o ar no dia 12 de Outubro de 2001, na TV Globinho, mas rapidamente passou para a programação da Globo. A primeira temporada durou até final do ano de 2002, adaptando as histórias de Monteiro Lobato, mas depois começaram a ser criadas novas aventuras idealizadas especialmente para a televisão, mantendo o espírito de Monteiro Lobato.

Nesta versão, a boneca Emília foi interpretada por uma criança, a actriz Isabelle Drummond. Acrescente-se que esta foi a primeira vez que tal aconteceu na televisão, mas não a primeira vez que Emília foi interpretada por uma "actriz criança", pois anteriormente, numa adaptação para cinema, datada de 1951, e realizada por Rodolfo Nanni, também fora uma menina chamada Olga Maria quem interpretara o papel de Emília, num filme ainda a preto e branco, intitulado “O Saci”, baseada no livro "O Saci" de Monteiro Lobato. Com estas excepções, a boneca Emília fora sempre interpretada por actrizes adultas.

Curiosidades a ter em conta: o efeito mágico do "Pó de Perlimpimpim", na versão de 1977, tinha sido transformado numa "palavra mágica" para evitar comparações com a cocaína. Os moradores do “Sítio” apenas podiam gritar: "Perlim Pim Pim" para viajarem no espaço. Nos livros de Monteiro Lobato, o Pó de Perlimpimpim era aspirado pelo nariz pelas personagens, enquanto na versão de 2001, passou a ser lançado sobre as cabeças dos personagens, numa alteração que o aparentou com o "Pó Mágico" da Sininho, na história "Peter Pan" de J.M. Barrie. Outra questão que criara problemas com a censura nos anos 70, era o facto da Emília alterar ou pronunciar erradamente algumas palavras, como "Bissurdo", "Arimética", ou "Obóvio". No século XXI isso passou a ser permitido.

Mas a história do “Sítio” na televisão não ficaria por aqui. Em 2009, o canal Futura resolveu voltar a transmitir a versão de 2001, e exibiu um “especial de Natal”, em Dezembro. Já em 2010, o canal Viva tem apresentado episódios do “Sítio” de manhã e à tarde.

É também em Novembro de 2010 que o “Sítio do Picapau Amarelo” chega aos palcos portugueses, pela mão de Filipe La Féria, que assina a encenação, os cenários e figurinos, e ainda a adaptação e condensação numa única acção de várias histórias de Monteiro Lobato, no que contou com a colaboração de Helena Rocha.

A história não se conta, vive da surpresa e da invenção das personagens que elegem a imaginação como o seu mundo preferido. Dona Benta é como sempre uma velha senhora que vive no seu “Sítio do Picapau Amarelo”, com a sua cozinheira negra, Tia Nastácia, que delicia os habitantes da casa com os seus pitéus, e a sua neta, Lúcia, mais conhecida como Narizinho Empinado. A “Narizinho” é uma miúda solitária, que resolve a questão da companhia criando um mundo muito seu, de fantasia e espanto. A sua boneca de trapos, Emília, “cozinhada” pela Tia Nastácia (que também irá inventar o Visconde Sabugosa, a partir de uma espiga de milho), é a sua principal companheira de folguedos. O Tio Barnabé, que trata da quinta, Pedrinho, o primo da cidade, o sentencioso Visconde de Milho, Saci Pereré, o diabo de uma perna só, retirado do folclore brasileiro, a famigerada Cuca, uma bruxa que inferniza quem a rodeia, a sereia Iara, e ainda caranguejos, sapos, sardinhas, tartarugas e demais companheiros de quadros escoltam as figuras centrais e dão consistência à história que vive sobretudo do seu elogio à imaginação e à magia de existir e de saber retirar da vida o seu melhor.

Com um elenco muito correcto e afinado (isto é: delirante!), de que fazem parte Cátia Garcia, Sissi Martins, Ruben Madureira, André Lacerda, Bruna Andrade, Filipe Albuquerque, Cláudia Soares, Carla Janeiro, Rosa Areia e Tiago Isidro, Filipe La Féria constrói um espectáculo ao seu jeito, repleto de luz e cor, um ritmo vivaz, uma alegria transbordante e uma moralidade irrepreensível para estes dias cinzentos que se atravessam.

Falando ainda dos actores, justo será realçar o trabalho de Cátia Garcia, nesta altura certamente a princesa dos espectáculos infantis, depois de ter sido protagonista de “A Estrela”, “Alice no País das Maravilhas” e “O Feiticeiro de Oz”, sempre com redobrado talento e entrega, e que aqui brilha na boneca de trapos. Cátia Garcia, pela sua silhueta e pela delicadeza que empresta às personagens, ajusta-se muito bem a este tipo de papel, ainda que já tenha assumido outros de cariz diverso, como em “West Side Story”. Outras duas referências justas vão para Sissi Martins, a Narizinho, também muito bem, e para a truculenta Bruna Andrade que nos oferece uma deliciosa Cuca.

A inspirada partitura musical, com alguns temas de Gilberto Gil e Caetano Veloso, foi recreada por Mário Rui, deixando entrever influências muito certeiras de diversos musicais inesquecíveis. A coreografia de Inna Lisniak, os adereços de Miguel Quina, a iluminação de João Fontes e a sonoplastia de Ricardo Ceitil ajudam à festa, que teve como assistente de encenação Frederico Corado. O “Sítio do Picapau Amarelo” fica assim como um espectáculo a não perder, quer para quem já conhecia a onda quer para quem se vai recrear com ela pela primeira vez. Uma boa e sadia onda de bem disposta magia.  

(1) Este elenco manteve-se durante um ano, mas depois foi sofrendo algumas alterações: Reny de Oliveira substituiu Dirce Migliaccio em Janeiro de 1978 e ficou até Dezembro de 1982. Ainda em 1978, a actriz Stela Freitas passou a interpretar a Cuca e Francisco Nagen o de Elias Turco. Em 1980, Rosana Garcia e Júlio César também abandonaram o programa, pois deixaram de ser crianças e transitaram para o clã dos adultos. Foram substituídos por Daniele Rodrigues (que passou a chamar-se Daniela) e Marcelo Patelli (na série Marcelo José). Por essa altura também Cuca mudou de actriz: Catarina Abdalla foi Cuca de 1981 até o final do programa. Muitos outros actores passaram pelo “Sítio”, em papéis de convidados, para participações fortuitas, como Gabriela Alves (Anjinho da Asa Quebrada), Zezé Macedo (Dona Carochinha), Dário Reis (Capitão Gancho), Mírian Rios (Branca de Neve), Mário Cardoso (Príncipe da Branca de Neve, 1978, Rapunzel, 1981, a Fera, de A Bela e a Fera, 1982), Lúcia Alves (Ariadne), Gracindo Júnior (Teseu), Lucinha Lins (Rapunzel), Bia Lessa (Cuquinha, Dona Benta, transformada em adolescente, e Ordélia), Maitê Proença (Bela), Cláudio Correia e Castro (Gepeto), Daniel Filho (Tom Mix), Cininha de Paula (tia da Bela Adormecida e Morfélia, irmã da Ordélia) ou José de Abreu (Barba Azul).

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