terça-feira, julho 13, 2010

FESTIVAL DE TEATRO DE ALMADA, NOTAS, 6

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DANÇA DA MORTE / DANÇA DE LA MUERTE

Há espectáculos perfeitos. Redondos. Burilados como obra de relojoaria. Ou de ourives, como dizia alguém a meu lado. “Dança da Morte” é um desses mágicos objectos de palco, onde tudo parece estar no seu lugar, no seu tempo, na sua duração, com a palavra certa, o movimento e a luz, a cor e o som, a voz e a música. Esta criação de Ana Zamora recupera textos portugueses e espanhóis dos séculos XIV a XVI, centrados na temática da morte. A "Dança General" (“Códice de Et Escorial” e edição sevilhana de 1520) serviu como eixo central para uma dramaturgia que se articula com fragmentos de obras de Gil Vicente ("Barca do Inferno", "do Purgatório" e "da Glória", "Quem tem Farelos", "O Velho da Horta", "Farsa dos Físicos", "Comédia do Viuvo" e "Romagem de Agravados"), assim como com outros textos anónimos de carácter dramático como o "Diálogo entre el Viejo, el Amor y la Mujer Hermosa", e material lírico procedente de diversos cancioneiros dos séculos XV y XVI.
Explica ainda a autora que “a peste negra, pandemia que assolou a Europa durante o século XIV, dizimando um terço da população, desencadeou uma intensa reflexão acerca da precariedade da vida, sendo a “dança macabra” uma das suas expressões culturais mais impressivas.” Aqui se vêem actores, que são também bailarinos, cantores e músicos, recuperarem esses entremezes medievais, confrontarem o sacro e o pagão, o terror e o humor, a vida e a morte, a missa e o baile. Uma disposição cénica brilhante, guarda-roupa e adereços notáveis, uma iluminação de ritual místico, mas também de festa profana, e uma interpretação onde a palavra, o gesto, o movimento estão onde deveriam estar desde sempre: ao serviço de uma ideia, consolidando a magia do cerimonial. A encenação desfruta cada momento, retoca ao pormenor cada detalhe, nada acontece por acaso e tem invenções magníficas, como o achado dos diferentes chapéus dispersos pelo espaço cénico, servindo cada um deles para invocar uma personagem.
Falado em espanhol e português, num texto muito bem articulado e magnificamente interpretado por todo o grupo, mas saboreado como só Luís Miguel Cintra o sabe fazer, com uma voz inigualável e uma consciência profissional invejável, este espectáculo é um hino à competência técnica e ao talento, tudo isto estribado num vasto saber e numa sólida cultura de clássicos e modernos. É curioso como, partindo de textos de antanho, se concebe, sem desvirtuar uma vírgula, um espectáculo moderno, sugestivo, efervescente de criatividade, sem nunca a tentar atirar aos olhos do público.
Na barca da morte, todos teremos o nosso lugar, ricos e pobres, sacerdotes e almocreves, burgueses e plebeus. Ninguém foge ao seu chamamento, mas até lá que tal saborear os prazeres de estar vivo? Vendo espectáculos como este, por exemplo, entre muita outra salutar oferta que a existência nos reserva a cada dia. O cheiro a incenso e as luzes bruxuleantes, o cerimonial dos rituais invocam certamente diabólicas personagens e medos ancestrais, mas igualmente o prazer de respirar. Que a caveira a que todos nos reduziremos um dia chegue tarde, o mais tarde possível e que os folguedos nos incendeiem o corpo e o espírito.

Dança da morte
A partir de textos portugueses e espanhóis dos séculos XIV a XVI
Dramaturgia e direcção de Ana Zamora; Produção: Nao d’Amores (Madrid) e Teatro da Cornucópia (Lisboa); Intérpretes: Luis Miguel Cintra, Sofia Marques,Elena Rayos; Interpretação musical: flautas, cromornoe chirímia: Eva Jornet, viola de gamba: Juan Ramón Lara, órgão: Isabel Zamora
Arranjos e dir. musical: Alicia Lázaro; Cenário: David Faraco, Almudena Bautista; Figurinos: Deborah Macias; Desenho de luz: Miguel Ángel Camacho; Coreografia: Javier García Ávila; Assessor de verso castelhano: Vicente Fuentes; Assistência artística e de produção: Ana Szkandera; Director de produção de “Nao d’Amores”: Germán H. Solis; Assist. de encenação: Manuel Romano; Desenho gráfico: Cristina Reis; Assistente de cenografia e figurinos: Linda Gomes Teixeira, Luís Miguel Santos; Director técnico: Jorge Esteves.

Ana Zamora, com a sua companhia “Nao d’Amores”, estreou-se em Portugal no Festival de Almada de 2005, com “Auto de los quatro tiempos”, de Gil Vicente. No Festival de 2009, apresentou outro trabalho seu, “Misterio del Cristo de los Gascones”. Dedicando-se com grande mestria à encenação do primevo teatro ibérico, na sua dupla dimensão religiosa e profana, Ana Zamora já dirigiu – entre vários textos de outras épocas (como “Viaje del Parnaso”, de Miguel de Cervantes, em 2005) – “Auto de los Reyes Magos” (2008), “Sibila Cassandra”, de Gil Vicente (2003) ou “Comedia llamada metamorfosea”, de Joaquín Romero de Cepeda (2001). Em 2008 foi-lhe atribuído o Prémio ADE de encenação, pela Associação de Encenadores de Espanha.
Encenação de Ana Zamora

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