domingo, março 07, 2010

CINEMA: ESTADO DE GUERRA

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ESTADO DE GUERRA

Este ano, na cerimónia de atribuição dos Oscars, vai haver uma situação a merecer atenção muito especial. Nas categorias de melhor filme e de melhor realizador vão estar em disputa, frente a frente, James Cameron, com “Avatar” e Kathryn Bigelow com “Estado de Guerra”, um casal que já foi marido e mulher (1). Aprofundando esta curiosidade, há que recordar de um lado um dos filmes mais caros de sempre, que se converteu na maior fonte de receitas até hoje conhecida, enquanto, no outro extremo, temos uma obra de orçamento reduzido, que, apesar da boa recepção crítica e do triunfo em festivais e diversas premiações, não conseguiu descolar da 131ª posição no “box oficce” anual norte-americano. Sendo ambos filmes de guerra, um futurista, outro bem real e presente, realista e quase documental, ambos se servem da guerra para a combater e ambos se mostram relutantes com a presença americana fora de portas, a impor a sua ordem. Se este aspecto os irmana, já o lado majestosamente espectacular de “Avatar” se afasta completamente do intimismo de “The Hurt Locker”, o que para um “filme de guerra”, não deixa de ser absolutamente surpreendente.
Diga-se ainda de Kathryn Ann Bigelow que esta é uma das mais interessantes cineastas norte-americanas reveladas na década de 80. Nascida a 27 de Novembro de 1951, em San Carlos, Califórnia, filha de um gerente de fábrica de tintas e de uma livreira, foi como bolseira do Whitney Museum, em Nova Iorque, que começou a sua carreira de pintora. Depois, estudou cinema, teoria e crítica, na Columbia University, onde foi aluna de Vito Acconci e Susan Sontag.
O seu filme de estreia foi uma curta-metragem de ficção, “The Set-Up” (1978), onde se analisavam comportamentos violentos. Seguiu-se “The Loveless” (1982), mas foi sobretudo com “Near Dark” (Depois do Anoitecer, 1987), uma aproximação ao filme fantástico com vampiros, que começou a ser notada. Em 1990 escreve e dirige “Blue Steel” (Aço Azul), com Jamie Lee Curtis, um “thriller” tumultuoso sobre uma mulher polícia perseguida, e em perseguição, de um assassino psicótico. Com “Point Break” (Ruptura Explosiva, 1991), protagonizado por Keanu Reeves, um agente do FBI que tenta prender um gang de assaltantes de bancos que actua com máscaras dos ex-presidentes dos EUA, Reagan, Nixon, LBJ e Jimmy Carter, volta a captar as atenções de público e crítica, que se rendem definitivamente ao seu talento em "Strange Days" (Estranhos Prazeres, 1995), uma psicadélica e violenta incursão por uma Los Angeles de pesadelo. O filme seguinte, “The Weight of Water”, baseado num romance de Anita Shreve, que abordava as relações tensas e sufocantes entre duas mulheres. “K-19: The Widowmaker” (2002), com Harrison Ford, foi um fracasso de bilheteira, que impôs a Bigelow um período de tréguas, regressando em força com “The Hurt Locker” (Estado de Guerra, 2009). Entretanto foi afiando as garras nalguns episódios de séries para televisão, como "Wild Palms" (1993), "Homicide: Life on the Street" (3 episódios, 1998-1999) ou "Karen Sisco" (1 episódio, 2004). Tem em pré produção “The Miraculous Year”, para televisão, previsto para 2011.
“Estado de Guerra” concretiza a consagração, qualquer que seja os resultados dos Oscars. Já ganhou o prémio para melhor realizador do ano da “Directors Guild of America”, foi melhor realizador e melhor filme de 2009, para a British Academy Film Awards, ganhou nomeações para os Golden Globe e os Oscars. James Cameron, que arrecadou o Globo, afirmou que Bigelow deveria ter sido a vencedora. Mas foi a primeira mulher a ganhar um BAFTA Award, para melhor realização, e a sua nomeação para melhor realizadora, nos Oscras, só tem três precedentes: Lina Wertmüller, com “Pasqualino das Sete Beldades” (1976), Jane Campion, com “O Piano” (1993), e Sofia Coppola, com “Lost in Translation” (2003). Se ganhar, é a primeira a consegui-lo nesta categoria.
Posto isto, “Estado de Guerra” é realmente um grande filme, que vive agarrado a três ou quatro personagens, militares americanos na guerra do Iraque, especialistas em localizar e despoletar minas e bombas. O cenário não pode ser mais desolador e miserável, as ruas esventradas de Bagdad, o lixo arrastado pelo vento, a areia a entranhar-se nas roupas e nos olhos, e um militar vestido de astronauta caminhando numa paisagem de “western spagheti”. Um robot que parece saído da “Guerra das Estrelas” dos pobrezinhos tenta desmantelar à distância uma mina, mas quebra uma das rodas, e lá parte o astronauta intrépido no seu encalço, procurando resolver com os dedos o que não foi conseguido com a tecnologia. A tensão cresce, mas este é apenas um dos lados da questão. O mais angustiante é ver os soldados numa rua de uma cidade que desconhecem, armas apontadas às casas e a cada transeunte que passa, olhos dilatados pela dúvida, pela suspeita, pela impossibilidade de confiarem em quem quer que seja. Nesta guerra não há aliados, só inimigos. Ou potenciais inimigos. Um rosto que se aproxima é alguém que tem de se afastar ou de se abater, um olhar por detrás de um cortinado, um comerciante a teclar num telemóvel, um rebanho a pastar lá longe, tudo adquire um peso insuspeito, uma presença inquietante, e a tensão redobra.
A câmara movimenta-se à mão, e esta oscilação é mais um elemento perturbador. Aproxima-se, afasta-se, re-enquadra o espaço, corre em direcção ao estranho objecto, rente ao chão, vagueia nos primeiros andares destas casas que se fecham sobre si próprias, e este estilo de narração é a essência do próprio filme. A câmara são os olhos perscrutantes dos militares, intimidados e alerta.
Há uma legenda a abrir o filme que reza assim: “A emoção da batalha costuma ser um vício forte e letal. A guerra é uma droga”. O autor Chris Hedges, jornalista e correspondente de guerra, especialista no Médio Oriente, é autor de obras como “Empire of Illusion: The End of Literacy and the Triumph of Spectacle” (2009). James, protagonista deste filme, é um viciado em saturação de adrenalina. Para ele o perigo é uma espécie de roleta russa que deseja ou um suicídio programado ao jogo. Não se põe em risco só a si, mas a toda a equipa que comanda, homens que o detestam e o admiram simultaneamente.
O argumento de “Estado de Guerra” parte das experiências pessoais de Mark Boal, jornalista e argumentista, que experimentou a guerra “in loco” e dela já tinha extraído material para um outro filme, "No Vale de Elah", de Paul Haggis. O resultado é brilhante, colocando-se ao lado dos melhores filmes que a barbárie da guerra já inspirou. Rodado na Jordânia, deixa-se impregnar pela secura do deserto e a desconfiança do clima. Nove nomeações para Oscars, entre as quais a de melhor filme, melhor realização e melhor actor, Jeremy Renner, são reconfortantes recompensas para uma autora que, ao longo da sua curta mas impressiva carreira, se tem dedicado a estudar e analisar com particular acuidade casos de alienante adição, quer seja à violência, às drogas ou ao perigo que a guerra transporta.

(1) Completando a curiosidade, diga-se que Cameron já foi casado por cinco vezes: Sharon Williams (1978–1984), Gale Anne Hurd (1985–1989), Kathryn Bigelow (1989–1991), Linda Hamilton (1997–1999), Suzy Amis (2000–até ao presente). Oscilando, portanto, entre realizadoras e actrizes.

ESTADO DE GUERRA
Título original: The Hurt Locker
Realização: Kathryn Bigelow (EUA, 2008); Argumento: Mark Boal; Produção: Kathryn Bigelow, Mark Boal, Nicolas Chartier, Jenn Lee, Tony Mark, Donall McCusker, Jack Schuster, Greg Shapiro; Música: Marco Beltrami, Buck Sanders; Fotografia (cor): Barry Ackroyd; Montagem: Chris Innis, Bob Murawski; Casting: Mark Bennett; Design de produção: Karl Júlíusson; Direcção artística: David Bryan; Decoração: Amin Charif El Masri; Guarda-roupa: George L. Little; Maquilhagem: Daniel Parker, Robin Pritchard, Janice Rhodes; Direcção de Produção: Karima Ladjimi, Jack Schuster; Assistentes de realização: Nicolas Duchemin Harvard, Michelle Fitzpatrick, David Ticotin; Departamento de arte: Rime Al-Jabr, Sana'a Jaber, Marwan Kheir, Mike Malik, Gary Thomas; Som: Paul N.J. Ottosson; Efeitos especiais: Blair Foord, Ernst Gschwind, Richard Stutsman; Efeitos visuais: Benjamin H. Bernard, Changsoo Eun, Tom Kendall, Dan Lopez, Kurt McKeever, Bob Minshall, Alex Romano, Doug Spilatro; Companhias de produção: First Light Production, Kingsgate Films; Intérpretes: Jeremy Renner (Sgt. William James), Anthony Mackie (Sgt. JT Sanborn), Brian Geraghty (Spc. Owen Eldridge), Guy Pearce (Sgt. Matt Thompson), Ralph Fiennes (chefe de grupo), David Morse (Coronel Reed), Evangeline Lilly (Connie James), Christian Camargo (Coronel John Cambridge), Suhail Aldabbach, Christopher Sayegh, Nabil Koni, Sam Spruell, Sam Redford, Feisal Sadoun, Barrie Rice, Imad Dadudi, Erin Gann, Justin Campbell, Malcolm Barrett, Kristoffer Ryan Winters, J.J. Kandel, Ryan Tramont, Michael Desante, Hasan Darwish, Wasfi Amour, Nibras Quassem, Ben Thomas, Nader Tarawneh, Anas Wellman, Omar Mario, Fleming Campbell, David Gueriera, Kate Mines, etc. Duração: 131 minutos; Distribuição em Portugal: ZON Lusomundo; Classificação etária: M/ 16 anos; Estreia em Portugal: 17 de Setembro de 2009
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