sábado, fevereiro 17, 2007

LIVROS - Serpentes e Piercings



SERPENTES E PIERCINGS


Devo dizer-vos que o li de um fôlego. São só 120 páginas, é verdade. Mas a escrita é escorreita e o clima que cria algo assustador. Durante a noite, julguei ter febre, o que seria fácil, dado estar com uma carga de gripe tremenda. Mas não era febre dessa, era febre provocada pela leitura.
O livro chama-se “Serpentes e Piercings” e é escrito por uma jovem japonesa, Hitomi Kanehara. Fixem o nome, vale a pena. Saiu de casa adolescente, aos 11 anos deixou a escola, viveu como quis, começou a escrever e a enviar por mail ao pai o que ia escrevendo. Este, que era tradutor de profissão, foi dando conselhos e burilando ao longe a escrita. Aos 22 anos escreveu “Serpentes e Piercings” que ganhou o prémio literário mais importante do Japão. Traduzido em 20 línguas, vendendo milhões, dizem que se trata de um livro de culto. Não sei. Sei que o li e me marcou profundamente. 120 páginas de permanente angústia, mas de uma angústia que se distância muito da nossa ocidental angústia. Aqui há uma corrida para o abismo, mas uma corrida que se passa nos "bas fonds" de Tóquio, por entre desempregadas e "gangsters", entre "barbies" e "punks", mas com uma elegância de comportamento que por vezes surpreende. A violência física e psicológica é a maior, mas nada se passa sem um toque de elegância. Elegância, será o termo? Faz-me lembrar os filmes da minha infância, Fu Manchu e quejandos, que matavam e torturavam com as mãos sobre o peito e um sorriso mefistofélico nos olhos. Aí havia ironia, aqui há apenas desespero. Acredito que rapidamente passe a cinema: a escrita é altamente visual, pede imagens.
Lui tem dezanove anos, trabalha esporadicamente como “acompanhante”, é profundamente rigorosa e cumpridora no seu trabalho, mas nada a entusiasma na vida. É considerada uma “barbie”, até encontrar Ama, um jovem feio e magro, num bar "punk". Ele tem a língua bifurcada, e tatuagens no corpo. Um dragão. Ela fica seduzida por esse rapaz e vai com ele. Para a cama e para a casa de Shiba, que a prepara para ter igualmente a língua bifurcada. Mas Shiba leva-a também para a cama, e para relações sadomasoquistas que têm a dor e a morte como horizonte. Lui deixa quase de comer e bebe. Bebe sem parar. São jovens a que a normalidade da vida pouco diz e que só no diálogo com a dor mais intensa se sentem vivos. Esta relação a três tem rápido desfecho mas revela-se traumática. Para os protagonistas desta aventura de vida sobre o fio da navalha, mas também para nós, simples leitores. O romance de Hitomi Kenehara não nos larga a cabeça e a incomodidade é total. Mas a escrita é realmente fascinante, límpida, na sua transparência, suave, na forma como desliza, forte e intensa, na imaginação ou vivência que destila, mas elegante e ágil no estilo. Ruy Murakami disse: “Uma interpretação radical do nosso tempo.” É verdade. Mas que tempo é este?

Dois excertos de “Serpentes e Piercings”:

(..) Peguei na mala para me vir embora e depois Shiba-san virou-se subitamente para mim. Parei.
- O que foi?
- Acho que sou capaz de ser um filho de Deus - disse ele sem mudar de expressão.
- Filho de Deus? Isso não é o nome de um filme reles de série B?
- Não. Pensa nisso. Deus só pode ser um sádico, para ter dado vida às pessoas.
- Então estás a dizer que a Maria era masoquista.
- Sim, acho que sim - murmurou Shiba-san, e voltou-se de novo para a prateleira. Peguei na mala e saí de trás do balcão.
- Queres comer alguma coisa antes de ires?
- Não, o Ama deve estar a chegar a casa.
- Está bem. Então depois falamos - deu-me uma palmadinha na cabeça. Eu segurei-lhe no braço direito e acariciei o Kirin.
- Vou fazer-te um desenho fixe - disse ele.
Sorri, acenei e saí. Lá fora, o Sol estava a pôr-se
e o ar era tão fresco que quase sufoquei. Apanhei o comboio até casa de Ama. O passeio de lojas, da estação até casa, estava demasiado cheio de famílias. Na verdade, o som de todas aquelas vozes deu-me von­tade de vomitar. Uma criança embateu contra mim e a mãe fingiu não reparar. Mas eu fitei o miúdo, até que ele ergueu os olhos e me viu. Quando o nosso olhar se cruzou, juro que ele estava quase a chorar, por isso limitei-me a abanar a cabeça num gesto de desaprovação e continuei a andar. Não queria viver neste universo. Queria viver temerariamente e não deixar para trás nada a não ser cinzas, neste mundo sombrio e monótono.

(…) Afinal de contas, não fazia sentido estar à espera de uma solução quando nem sequer tinha um proble­ma. A vida parecia-me vazia, mais nada. Acordava de manhã, despedia-me de Ama, depois voltava a adormecer, praticamente todos os dias. De vez em quando, saía e trabalhava um pouco, às vezes ia fazer sexo com Shiba-san ou encontrava-me com amigos, mas, fizesse o que fizesse, acabava sempre por me sentir em baixo. Quando Ama chegava a casa, à noite, saíamos para jantar e partilhávamos uma travessa de qualquer coisa, regada com várias bebidas. Depois voltávamos para casa e continuávamos a beber. Pen­sei se estaria a tornar-me alcoólica. Ama também estava preocupado comigo. Andava sempre de roda de mim e fazia o que podia para tentar animar-me, falando excitadamente sobre várias coisas. Depois, quando via que não resultava, desatava a chorar, per­guntando «Porquê? Porquê?» e dizendo uma e outra vez que se sentia magoado e zangado.
Vê-lo assim dava-me vontade de corresponder aos sentimentos dele, mas, sempre que uma peque­na semente de esperança ganhava raízes dentro de mim e começava a crescer, era esmagada por uma forte descarga de auto-desprezo. Em suma, não havia simplesmente luz. A minha vida e o meu futuro eram negros como breu e eu não conseguia ver nada ao fundo do túnel. Não que antes disso esperasse gran­des coisas para mim, simplesmente agora conseguia imaginar-me claramente a aparecer morta numa sar­jeta qualquer, e nem sequer tinha energia para me rir destes pensamentos. Pelo menos, antes de conhe­cer Ama, sempre estivera preparada para vender o meu corpo se as coisas chegassem a esse ponto. Mas agora não conseguia forçar-me a fazer mais nada senão dormir e comer. Na verdade, acho que prefe­ria morrer do que sair com homens de meia-idade nojentos. Não sei o que seria melhor - trabalhar como prostituta para viver, ou morrer para não ter de trabalhar como prostituta? Diria que esta última alternativa seria a escolhida por uma mente saudá­vel, mas, por outro lado, estar morto não tem nada de saudável. Seja como for, dizem que as mulheres sexualmente activas têm melhor pele. Não que eu me ralasse muito com a minha saúde.
No dia em que alarguei o buraco na língua para um calibre quatro, deitei muito sangue e não conse­guia forçar-me a comer, portanto bebi apenas cer­veja. Ama disse-me que eu estava a apressar dema­siado o buraco, mas não me importei - eu estava com pressa. Claro, não estava propriamente a tentar cum­prir um prazo, nem tinha nenhuma doença termi­nal. Simplesmente tinha a sensação de que o tempo estava a esgotar-se. Talvez haja alturas na vida em que as coisas têm de ser apressadas.
- Alguma vez sentes que queres morrer? – perguntou Ama do nada, uma noite, quando voltávamos para casa depois de jantar.
- Constantemente – respondi.

“Serpentes e Piercings”, de Hitomi Kanehara, Ed. Caderno.

10 comentários:

Bandida disse...

será que queremos morrer constantemente?!...


22 beijos para ti... ena!!!!!!....tantos....

B.
_________________________

Isabel Victor disse...

Fiquei com imenso apetite por " Serpentes e Piercings" ...
depois desta empolgante degustação literária !


Beijos

Ana Paula Sena disse...

Acredito que seja bem escrito e gostei de saber que está aí disponível. No entanto, do que li pareceu-me demasiado violento para fazer o meu género.
Mas foi um bom post seu, L.A..
A.P.

intruso disse...

fiquei com vontade de ler... (não conhecia)

[O Dracula...
na verdade não está em espera...
está em marcha... lenta, infelizmente, mas só por agora...]
;)

grande abraço

p.s.
até dia 22,
quase aí...

vague disse...

Vou tomar nota urgentemente.

Anónimo disse...

Há basicamente um ano, andei um dia desesperada por uma leitura, fui á papelaria mais proxima, digo e repito, papelaria, daquelas que contém livros antigos ou mesmo que nunca ninguem se interessou em ler.. bem, não tinha opção.. fui vendo relendo e encontrei o Serpentes e Piercing numa prateleira bem chegada ao livro da princesa Diana, bom, nada a ver, foi o que pensei, cativada pela sua capa (do Serpentes não do da Diana), li um pouco da contra mas não estava á espera de muito, pelo aspecto da livraria, iria ser só uma leitura diária em que nos cansamos facilmente, pousamos o livro, e nunca mais lhe pomos a vista em cima. Enganei-me, porfundamente e com isto direi que nunca mais voltarei a deduzir pela sua capa um livro. Fui o caminho de regresso a casa, começando a ler, e li e li e li e li.. tanto li que 2 horas depois o acabei e acabei, não pela primeira vez, em lágrimas, mas desta foi algo muito perfeito.. Já li muito, continuo a ler mas este livro, desse ano atras até aos nossos dias, continua todos os dias a ser relembrado por mim,seja por o observar ou mesmo qualquer pensamento do dia irá acabar a pensar num pouco dela; fora as vezes em que as suas páginas já foram de tanto relidas( e não foram poucas).. Estive 2 meses para retomar outra leitura que não esta mas de novo a li e reli e..... Desejo conta-lo a toda gente, mas quero guarda-lo para mim. Fui influenciada por ele. e digo, fiquei e estou e estarei viciada nele, imenso!! Hitomi Kanehara, de jovem e escritora, como a minha avó diria nas suas aflitas expressões "é um anjo" :)
vou repetir, e repetirei... e fico á espera da sua tradução do autofiction para portugues com a curiosidade se será como Lui,Ama e Shiba-san ou pior(melhor não pode)
bem, com este testamento, só para referir, que adorei a tua critica e deixo aqui a minha humilde :D

******

Lyee disse...

Tenho a dizer que por um mero acaso encontrei esse livro, a capa sugestiva agradou-me e acabei por compra-lo. Li. Senti-me profundamente estranha depois de o ler. Sentia-me exactamente como Lui, tal como num desses dois excertos diz. Estranho mesmo. Sentia-me vazia, sem vontade para nada mesmo. Tive que voltar a ler. Agora quero le-lo muitas outras vezes. E espero que venha o filme!

Anónimo disse...

Vi o filme à 2 dias. Encontrei o por mero acaso, quando andava a ver videoclips da cantora japonesa Chara (devo dizer que sou uma fanática por tudo o que é japonês) e surgiu uma música chamada 'Kieru' cantada por ela. Essa música continha partes do filme. Decidi pesquisar para ver que filme seria, consegui tirá-lo da internet legendado em inglês e vi-o. Vi-o e fiquei totalmente fascinada. Diferente daquilo que até agora já vi. Forte, mas mesmo assim fascinante.

Agora andava a ver se havia o livro traduzido na nossa língua, para não ter de comprar uma tradução francesa, mas já vi que há na nossa língua.

Quero comprá-lo. Será que o consigo arranjar numa fnac?

Beijinhos,
Mizuki aka Bárbara.

Anónimo disse...

eu li esse livro à pouco tempo, e acreditem que o quando lerem vão querer ler até ao fim é muito interessante.

:D

Anónimo disse...

eu li esse livro à pouco tempo, e acreditem que o quando lerem vão querer ler até ao fim é muito interessante.

:D