terça-feira, junho 27, 2006

CÁSSIA FERNANDES (II)


Poetisa, romancista, actriz, brasileira (com quem me cruzei pela vez primeira num palco do cinema de Vila Boa de Goiás, vai par cinco anos, durante um FICA), Cássia Fernandes não é ainda conhecida em Portugal, mas vai sê-lo. Até lá, aqui fica mais um exemplo da sua poesia, por vezes lirica, por vezes irónica. Nesta aventura de deixar as emoçôes atravessar o Atântico e aproximar as vozes (coisa não rara, entre escritores famosos, mas também entre outros que o são menos, oh!), a minha opção vai para quem faz da poesia, não a habitual filigrana de pinderiquice sentimental, mas para quem trabalha a palavra com o gozo de a saborear e a subverter.
(A foto é de um recital de Cássia, na Casa Museu de Cora Coralina, em Junho de 2005. Ela agora está mais magra, mas a doçura é a mesma.)

Impressões de uma fazenda que virou taperão

I
Com o tempo,
até o arame farpado,
abandonado
em rolos arrepiados,
vira capim.

O braquiara transforma
em si mesmo
a coisa amada.

Braveza e farpa
num mesmo nó
agora são um só.

E nele
galinhas chocam ovos
e vacas pastam, bocós!

II

Enquanto isso,
dois cochos apaixonados,
em intersecção
trocam o sal mineral das palavras
e as impressões
de seus toscos corações
de aroeira.

III

O braquiarão, persistente,
abraça as farpas do arame,
sem temer cortar-se.
Logo este, beligerante,
que pretende prender
até as rodas d` água,
que já não corre mais
como antes –
desnecessárias elas
no tempo
das minas abundantes
do antigamente.

IV

E nesse enquanto
o céu e o pedregulho
preparam
a represa
para a viagem circular
pelas estrelas.



V

Caverna de água e sombras de Platão
em traços de impressão.
Qual árvore será verdade
e qual vendaval?
Qual me leve e livre
e qual me lave e salve?
E de onde virá o louva-deus?
E por quais sinos dobram
as bananeiras?

VI

O tempo é mesmo implacável!
O tempo derruba cercas antigas
de aroeira.
E o paiol de milho
que antes abrigava
a fartura das colheitas
e filhotes de gato sem família
hoje é apenas uma porta
aberta para a vastidão do pasto
e para a solidão infinita.

VII

O tempo tudo avacalha
e tudo vilipendia.
O jacá de palha
e o carrinho de mão,
antes pesados e livres,
são apenas ninhos imóveis
cobertos de titica,
suspensos na gameleira,
que em si não se equilibra,
apoiada em troncos amputados,
muletas de seiva morta,
pra manter a sombra torta.

VIII

Antes frondoso exílio de menina,
hoje poleiro de angolas e galinhas,
hotel de jacaré,
que como o barão de Calvino
exilou-se no alto das árvores,
para fugir a seu destino
e do alto chorar
lágrimas e seivas
de crocodilo
e ter no jantar
deliciosos passarinhos.
Deus às vezes
corrige a criação
e dá asas a animais
de sangue frio!

IX

Juras provisórias de amor
de um certo Antônio Alves,
que ninguém sabe quem é,
que amava uma tal de E....
E de Etelvina, de Eterna,
de Élida Divina
e que não contou pra ela
que da gameleira
se fazem gamelas.

X

E ali, perto da inscrição a canivete
galhos que se confundem
como pernas e braços a gemer
no inferno
de Dante Alighieri
e Gustave Doré.


XI
Dessas impressões
de uma fazenda tornada Taperão
se conclui que:
o tempo e as galinhas
tudo transformam em ninho.
Nada escapa à sanha
de inverter-se
e de ter pintos.
Rolos de arame farpado.
Caixotes.
Velhas manilhas.
Pneus há muito rodados.
Pilões de monjolos desativados.
Regos d´água secos
de riachos deprimidos.
E até chapéus de palha,
que saíram a cavalo
ou a passeio
e jamais voltaram
para o seio
de seus cabides.
O tempo deixa mesmo
esse olhar contemplativo
para as paredes.

XII

E de tanto fuçar e ler,
passei a ver
na casinha em que se guardam
badulaques e tranqueiras,
fazendeiros do ar
que respiro.
Invisíveis,
montados em arreios,
balouçando estribos!

Cássia Fernandes
24-06-2006

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